Dos casarões das elites às periferias: a história dos saraus em São Paulo
A manifestação cultural que era exclusiva das elites paulistanas, foi democratizada e ganhou as periferias em um movimento que está apenas começando
Taynara Carmo
A embarcação da corte portuguesa tocou o solo brasileiro em 1808, trazendo ao país a vertente artística que viria a se tornar uma herança cultural do Brasil colônia: o sarau. Leitura poética e ambiente requintado caracterizavam essa luxuosa reunião de amigos, que teve seu perfil inspirado nos salons franceses, com ambientes particulares e público seleto.
Em São Paulo, o desejo de “afrancesamento” de alguns fazendeiros, os chamados “barões de café”, contribuiu para a disseminação dos saraus na cidade. Não se sabe ao certo o início da “Belle Époque Paulistana”, mas nas primeiras décadas do século XX foi possível registrar, na história da capital, uma forte movimentação cultural. Os saraus deste período tinham um caráter fortemente elitista e pouco democrático, como explica a historiadora Márcia Camargos:
“Os saraus da Belle Époque aconteciam em ambientes da elite, realizados na maior parte em espaços privados, nas casas das pessoas, e você só ia se tivesse conhecimento ou fosse convidado por algum outro conhecido. Não era aberto ao público e haviam uma série de regras. Todos tinham que seguir. Era um salão conservador, ninguém podia quebrar muitas regras e paradigmas.”
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Os saraus da Belle Époque aconteciam em ambientes da elite, realizados na maior parte em espaços privados. Não era aberto ao público e havia uma série de regras. Era um salão conservador, ninguém podia quebrar regras.
Márcia Camargos, historiadora
O famoso salão da Villa Kyrial era um reduto de cultura na cidade e começou a escrever sua história na cena cultural paulistana em 1904. Localizado na Vila Mariana e de propriedade do político João de Freitas Vale, o lugar revelou grandes talentos e foi o berço da Semana de Arte Moderna de 1922. Na Villa Kyrial aconteciam saraus literários, audições musicais, banquetes, concertos e conferências, que contavam com a presença de figuras como Lasar Segall, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, entre outros importantes nomes no cenário artístico e literário nacional.
Márcia Camargos explica a importância da Villa Kyrial nos movimentos culturais do começo do século XX: “É importante explorar esses períodos porque eles foram determinantes para transformar São Paulo e colocá-la no mapa cultural e artístico do Brasil. Esse período que antecedeu e pavimentou a estrada para ocorrência de movimentos de vanguarda como, por exemplo, a Semana de 22. Em seguida, vieram o Movimento Pau-brasil e o Movimento Antropofágico. Você não pode falar sobre a Semana de 22 sem falar da Belle Époque e sem falar do salão artístico de Freitas Vale.”

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Você não pode falar sobre a Semana de 22 sem falar da Belle Époque e sem falar do salão artístico de Freitas Vale.
Márcia Camargos, historiadora
O político José de Freitas Vale em frente sua casa, a Villa Kyrial, em dezembro de 1956
Foto: Acervo do jornal Folha da Noite
A Semana de Arte Moderna fez com que São Paulo caminhasse para o fim da “Belle Époque”, tirando a formalidade da cultura de elite e trazendo com força o Modernismo ao cenário cultural: “A semana de 22 já ia contra aquela história de cultura de elite e resgatou a oralidade, colocando o povo como protagonista da história”, explica Camargos.
As movimentações dos saraus nos salões das elites letradas chegam ao fim na década de 1940. Os jovens escritores, intelectuais e universitários, começam a se articular para manter os saraus na cidade, com isso surgem esses eventos nas praças e salas de teatro.
Anos 90: a efervescência dos saraus ressurge
Não é correto afirmar que os saraus passaram décadas adormecidos na cidade de São Paulo, mas foi apenas na década de 90 que a cidade sentiu novamente a efervescência desses eventos. Com novas expressões artísticas, os saraus ressurgiram e rapidamente foram pipocando em diversos pontos da cidade.
Em 1991, São Paulo ganhou um novo espaço destinado à literatura e poesia. O casarão dos herdeiros de Ramos de Azevedo se transformou na Casa das Rosas, local que oferece saraus e diversas outras manifestações artísticas na Avenida Paulista. A mansão, que foi concluída em 1935, faz parte da história da capital e hoje é patrimônio cultural da população.
Indo contra a versão tradicional de leitura poética erudita, o Sarau do Charles foi um dos primeiros a ser considerado “multicultural” na cidade. Sendo um dos mais antigos da capital, o sarau surgiu em 1996, na sala de casa do ator Alexandre Azevedo, no Largo do Arouche. Na época, não tinham muitas opções de saraus, e o Sarau do Charles surgiu como um respiro para poesia voltar a marcar sua presença na metrópole.
“Quando eu comecei era uma novidade, muitos artistas queriam se apresentar no sarau do Charles, porque era um espaço onde as pessoas poderiam mostrar seu trabalho. Os saraus viraram um movimento muito forte na cidade de São Paulo, e eu fico feliz de ter contribuído com esse movimento. No começo o nosso sarau arrebentou, virou matérias, capa da Folha, capa do Estadão, Diário, programas de televisão. Hoje o Sarau do Charles não é o maior sarau de São Paulo, mas historicamente ele teve sua contribuição e sua ascendência muito forte para contribuir para esse movimento”, explica Alexandre.

Tem movimentação nas periferias
Se durante o período da Belle Époque os saraus eram espaços frequentados apenas pelas elites, as periferias os tornaram espaços totalmente democráticos. A poetisa e articuladora cultural Maria Vilani vivenciou a transformação no bairro do Grajau, zona sul de São Paulo, ao promover cultura em uma região carente.
O bairro era conhecido como “Dormitório”, pois a população nada fazia nos espaços da região a não ser voltar tarde do trabalho e dormir. Não haviam polos culturais, realidade comum em regiões periféricas da capital. Vilani, por sentir o incômodo em não ter lugar para levar seus filhos a passeios dominicais, se articulou com outros artistas da região e realizou a primeira carreata poética da região, em 1991.
“Fomos em procissão poética. Fizemos uma escultura de uma mulher nua com os dizeres “A poesia pede socorro”, porque na época a poesia era da biblioteca, de quem tinha acesso à biblioteca. A grande maioria das pessoas não iam às bibliotecas com medo de serem mal recebidas. As pessoas que moram nas pontas nunca acham que aquilo que tem ali é para elas”, conta a poetisa.
O sarau que popularizou a literatura da periferia foi o Sarau da Cooperifa. O poeta Sérgio Vaz criou o Cooperifa em um bar, em 2001, e logo após vários outros saraus em bares, e às margens da cidade, foram aparecendo e ganhando força, causando alvoroço com a nova vertente cultural da capital. A literatura periférica trabalha sobretudo as dores e problemas sociais das periferias, levantando suas bandeiras por meio da arte.
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A grande maioria das pessoas não iam às bibliotecas com medo de serem mal recebidas. As pessoas que moram nas pontas nunca acham que aquilo que tem ali é para elas.
Maria Vilani, articuladora cultural
Vilani explica que os artistas das periferias estavam atuando cada um no seu canto, mas que tornaram o sarau uma vertente forte quando começaram a atuar em coletivo: “A Cooperifa é como um exemplo, onde os poetas se vêem. O Sérgio Vaz sacou isso aí, com muita inteligência, muito amor à arte e decidiu “Vou unir esse povo”. Ele sistematizou e foi muito feliz. O rio sempre correu, mas a Cooperifa foi um divisor.”
A nova vertente de sarau que surgiu nas periferias é o Slam. Geralmente a poesia é falada, mas não há uma regra geral sobre um formato específico a seguir. Desde 2013 a prática vem ganhando atenção e disputas. Diversas cidades no Brasil sediam campeonatos nacionais e internacionais de Slam. Essa manifestação artística surgiu nos EUA, na década de 80, mesmo período em que o hip-hop ganhava notoriedade no país. Não muito diferente dos saraus de periferia, os slammers também fazem críticas sociais e expressam suas realidades através da poesia.
Os saraus cada vez mais ganham notoriedade e se firmam no mapa cultural de São Paulo, tanto pelo espaço que abrem a novos artistas, quanto pelo peso político e social que possuem. A cada mudança na sociedade, os saraus se reinventam. Seja nos espaços das elites, ou nas periferias. Seja nas regiões centrais ou nos bares. Seja com manifestações político-partidárias, ou com atrações infantis. A vasta programação que a cidade São Paulo oferece hoje, com os saraus que resistem, revela que essa cultura está longe de chegar ao fim.