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A capoeira que resiste na praça

A história construída através da oralidade ganha força no palco de um sarau
Ana Laet

As manifestações que compõem a cultura popular brasileira são representadas através da música, da dança, da poesia, da culinária, dos instrumentos, da arte e da infinidade de elementos que compõem o que chamamos de pluralidade. Imagine um lugar, onde os elementos se misturam e se unem na mais perfeita sintonia, conseguiu?

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Assim emergiu o Sarau Musical da Capoeira. Através de uma celebração entre amigos, embalados pelo som do Rap e do Funk, entre tambores e berimbaus, surgiu o coletivo que mantém viva uma antiga tradição brasileira, a capoeira.

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O coletivo “Os Pretões” surgiu para resgatar e preservar a origem dessa tradição que sobreviveu, mas viu boa parte sendo modificada e até mesmo esquecida. Um dos idealizadores do sarau, Alexandre Padinha, percebeu que a base do conhecimento estava sendo perdida e que era a hora de colocar as linguagens de Matriz Africana em um só lugar.

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Não basta apenas entender a história, é preciso construir novas bases. A inquietação acerca deste sarau foi: como se mantém uma história construída pela oralidade?

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A importância de ocupar espaços públicos e levar conhecimento para as comunidades carentes, a inserção das mulheres e a quebra de estereótipos, o conhecimento sobre questões pouco abordadas e o acesso a informações pouco divulgadas, são temas que norteiam o Sarau Musical da Capoeira.

Estrada

Não demorou para que as competições e viagens tomassem sua agenda. Alexandre cruzou o globo. Morou em Singapura, Suíça e possuí vários núcleos espalhados pelo mapa. Recentemente montou um núcleo em Joanesburgo, na África do Sul, onde levará o sarau musical da capoeira em janeiro de 2019. 

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O novo núcleo faz parte de um projeto, desenvolvido por uma universidade local, que tem como objetivo expandir a capoeira para as starships, periferias e subúrbios de Joanesburgo. “Se a universidade te apoia, o governo apoia e se ele apoia, as empresas também apoiam. Você precisa de recursos para expandir o conhecimento até a população pobre”, explica. “Não tem classe média na África do Sul, você é pobre ou você é rico. Para esse projeto acontecer, é necessário apoio.”

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O foco o levou para Belgrado, na Sérvia, onde realizou um dos principais trabalhos com a capoeira, o Salão da Port. Alexandre também lembrou do Cordão de Ouro, evento realizado em Frankfurt, na Alemanha, mas não deixou de lado os eventos realizados no continente asiático. “Os eventos na Ásia são grandiosos porque são realizados em shoppings luxuosos ou universidades” relembrou. 

A tarde era típica de outono. Sol quente e vento gelado. Com os olhos cerrados e cheios de lágrimas, Alexandre se emocionou ao lembrar dos três jovens de Heliópolis que levou para um campeonato de capoeira no Rio de Janeiro. 

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Durante o passeio, um dos alunos não se conteve ao olhar o mar pela primeira vez. “Tive um déjà vu, aquele menino era eu. Quando eu tinha 15 anos parei em frente ao mar por meia hora e falei: ‘Prazer, mar. Eu sou o Alexandre’. Fiquei sem dormir por uma semana e quando ele chorou senti o papel da capoeira em transformar vidas”, relatou o capoeirista emocionado. 

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Aos 43 anos, o paulistano Alexandre Padinha se considera capoeirista antes de tudo, antes mesmo de ser publicitário, administrador e acadêmico.  Após 28 anos praticando e disseminando a capoeira por 28 países, dividido entre quatro continentes, Alexandre se prepara para lançar a sua própria empresa. No dia desta entrevista, ele se organizava para a reinauguração da Casa Cultural Chico Science – onde apresentaria o seu principal produto, o Sarau Musical da Capoeira.

Foi brincando pelas ruas do Ipiranga, e por influência de seus amigos, que ele começou praticando taekwondo na adolescência, mas logo percebeu que a sua paixão era outra: a capoeira. Graças a ela, ele cursou quatro graduações, três especializações, mestrado e agora o doutorado pela Universidade Federal do ABC. 

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Com um currículo extenso após trabalhar na Secretaria de Educação, Sesc e em diversos veículos de comunicação, Padinha dedica boa parte do tempo a sua turma de capoeira da UniSant'Anna. “Tenho 50 atletas, grande parte de periferia. Lá eles podem competir, treinar e acessar a universidade. Essa é a minha terceira turma e já saiu de tudo, desde engenheiro a psicólogo”, contou orgulhoso.

A língua, a política, a cultura e os costumes são fundamentais para trabalhar. O mesmo acontece com as comunidades aqui no Brasil.

Alexandre Padinha, capoeirista

Entre os países marcantes lembrou de sua passagem pela Malásia, Singapura e Timor-Leste, que fica no sudeste da Ásia. “No Timor, quando chegamos, veio um carro do consulado blindado, por causa dos conflitos, e fez o nosso translado”, contou. “É um país pobre, mas com grandes riquezas. Ele é motivo de estudo, principalmente pela sua colonização portuguesa”. 

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Depois de construir uma vasta experiência, Padinha leva como mensagem para os seus alunos a importância de aprender pelos lugares onde passa. “A língua, a política, a cultura e os costumes são fundamentais para trabalhar. O mesmo acontece com as comunidades aqui no Brasil. Recentemente comecei um trabalho no Grajaú, tive que me adaptar, conhecer os moradores e as lideranças da comunidade para poder ensinar a capoeira”, explicou. 

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Raízes Africanas

 

Ao longo dos anos, através de suas pesquisas e seus estudos, Alexandre percebeu que precisava fortalecer a linguagem da capoeira e a sua pluralidade, já que boa parte da história foi transmitida pela oralidade. Uma das principais intenções do sarau, e das matrizes africanas, é resgatar o que se perdeu durante o trajeto. 

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Foi aí que ele percebeu – e sentiu – que nós brasileiros sabemos pouco sobre a África. “Já que a grande transmissão é pela oralidade, transformamos o Sarau em um diálogo para discutir de forma poética e artística. A capoeira abrigou nos últimos 100 anos o samba de roda, o tambor de crioula e o jongo. Coisas que estavam para sumir. Até a capoeira foi abrigada, certamente teríamos pequenos indícios sobre ela se não fosse os terreiros de candomblé” explicou Padinha. 

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O Sarau Musical da Capoeira, um dos principais produtos da empresa de Alexandre, busca promover o resgate e a manutenção da tradição. Qualquer linguagem cultural, que se modifica ao longo do tempo, perde o fundamento de sua origem, podendo chegar ao fim de sua existência. 

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Alexandre traz através de seu trabalho o que ele chama de “devolutiva para a sociedade” e dedica tudo o que tem a capoeira. Atualmente o seu maior sonho, após realizar até os que não imaginava, é estar aposentado aos 50 anos. “Quando olho o meu passado e o meu presente, me sinto satisfeito com tudo o que fiz. Após muita luta quero a auto aposentadoria e trabalhar apenas com o que me faz feliz.”

Fotos: Ana Laet

Berimbau bateu, capoeira sou eu

Entre prédios e som de tambores, no Ipiranga, está o brasileiro que conquistou o mundo através da capoeira
Ana Laet

Mulheres Na Roda

A luta para conquistar espaço dentro de um esporte de “menino macho”
Clara Campos

Para Jessica, foi a influência da família, já para Eloana, foi o ritmo inebriante do berimbau. No caso da Joselita, foi o disco de vinil do Mestre Suassuna, e no da Eliane, bastou assistir uma menina fazer golpes e movimentos igualzinho os meninos faziam. O início das trajetórias destas mulheres na capoeira podem ter sido bem diferentes, mas todas compartilham da mesma luta para conquistar espaço e representatividade dentro dela. A arte marcial está enraizada na cultura brasileira a séculos, surgindo por volta do final do século XVI no Quilombo dos Palmares, e tradicionalmente foi praticada apenas por homens, seja pela “vantagem física”, ou por puro sexismo mesmo. Apesar disso, só nas últimas décadas a presença feminina vem aumentando na capoeira, mesmo com o machismo ainda se presente nas rodas.

 

Jessica Muniz cresceu cercada de mulheres capoeiristas, e já com sete anos de idade, incentivada pela família, começou a jogar também. Mesmo vendo a mãe e as tias na capoeira, Jessica já deu de cara com o preconceito no esporte em uma das piores formas. “Já aconteceu de um rapaz me deu um golpe de crucifixo, me jogando de cabeça no chão me fazendo apagar”, conta. Alguns homens podem se sentir ameaçados ao verem uma mulher dominando as técnicas da capoeira, e recorrerem a força bruta. “Eles diziam que a capoeira é coisa pra ‘menino macho’, é esporte sangrento”, diz Jessica.

Mesmo a capoeira sendo um esporte que envolve muito mais do que a força, tendo como principais pilares a técnica, disciplina, estado de espírito e, acima de tudo, o respeito, muitas mulheres capoeiristas precisam se impor por meio da brutalidade para serem reconhecidas. “Eu sempre treinei com homens, homens grandes, pesados e altos mesmo, pois sabia que se eu conseguisse derrubar eles, eu poderia derrubar qualquer um, e muitas vezes eu superava eles.”, diz a Mestra Eloana Bernardes, que também é pedagoga e trabalha a capoeira como ferramenta de transformação social.

 

Eloana já chegou a lecionar capoeira na antiga Febem, atual Fundação Casa, apenas para alunos homens, e conta um episódio onde precisou impor a sua autoridade de maneira dura, mas necessária. “Entrei na sala com um facão e um berimbau e disse: ‘hoje eu vou dar a minha aula’. Um dia houve uma rebelião da pesada, queimaram colchões e destruíram o complexo inteiro, mas deixaram os meus instrumentos intactos”, conta.

Eu sempre treinei com homens, homens grandes, pesados e altos mesmo, pois sabia que se eu conseguisse derrubar eles, eu poderia derrubar qualquer um.

Eloana Bernardes, pedagoga

A mestra também conta que a rivalidade entre mulheres capoeiristas muitas vezes é incitada pelos próprios homens como maneira de testar a sua capacidade nas rodas. “Eu tento ao máximo desconstruir isso, sempre falo para minhas alunas para sempre que chegarem em algum evento, fazer amizade com as outras meninas e fazer um jogo bonito e sem guerra. Precisamos nos fortalecer”, diz.

 

Mas o machismo não se manifesta apenas por meio da violência na capoeira, mas também pela privação das mulheres em posições essenciais na roda. “As mulheres não pegavam nos instrumentos de jeito nenhum, especialmente no berimbau , elas só podiam cantar as cantigas e bater palmas.”, conta Eloana. Esta prática também está registrada na cantiga “Vou-me embora para a Bahia”, nos seguintes versos:

"Minha mãe tá me chamando,

Oh! que vida de mulher!

Quem toca pandeiro é homem,

Quem bate palmas é mulher."

O berimbau além de ser um dos símbolos mais característicos da capoeira, é um instrumento que representa poder. Eliane Valadares pratica a capoeira desde os 12 anos, e também relata ter sido negada mais de uma vez de tocar o berimbau, “eles não dão o berimbau para as mulheres, mesmo indo pedir, eles não aceitam de jeito nenhum, é algo muito pessoal dos homens”, conta.

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Apesar da questão do machismo, a capoeira é um esporte que exige confiança em si e persistência, que acabam se tornando ferramentas poderosas para combater o preconceito dentro das rodas e empoderar mulheres. Joselita Oliveira, mais conhecida como Mestra Jô, conta com 36 anos de trajetória no esporte, diz ter tido vários encontros com o sexismo durante a sua carreira, “já vivi muitas situações preconceituosas, mas nunca me deixei levar por isso, pois sempre tive e tenho um propósito, um objetivo e além de tudo uma missão”.  Jô já viajou para 32 países diferentes junto com o renomado grupo Capoeira Brasil - Mestre Boneco e hoje leciona o esporte para meninos e meninas de todas as idades, sempre pregando a igualdade e o respeito.

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Por outro lado, Eliane prefere evitar entrar na roda com homens, mas quando entra, já sabe como conquistar o seu espaço: dominando a técnica. “Demonstro por meio da técnica o posso fazer, se ele faz algum movimento brusco, respondo com outro que se encaixa perfeitamente, e assim vou intimidando aos poucos.”, diz.

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E é aos poucos que as mulheres fazem uma revolução dentro da capoeira. Aos poucos uma menina pega no berimbau, aos poucos, uma contra-mestra se torna mestra, aos poucos as garotas vão deixando de competir entre si, aos poucos, uma capoeirista viaja pelo mundo, aos poucos as cantigas de roda vão se renovando. E, de pouquinho em pouquinho, a roda vai crescendo, se abrindo, e deixando quem quiser entrar.

Uma vez um cara enfiou os dedos nos meus olhos durante um treinamento, e depois disse ao mestre que ele dava mais valor para ‘mulherzinha’ do que um cara que queria brigar.

Jessica Muniz, capoeirista

Além da luta: a importância da música na capoeira

As funções multifacetadas das cantigas de roda
Clara Campos

Já parou para pensar que a capoeira é um dos pouquíssimos esportes em que a música tem um papel primordial? É difícil imaginar as rodas sem o som dos tambores e do berimbau acompanhando a melodia das cantigas que embalam o jogo. Sejam antigas ou sejam novas, as cantigas de roda dão o ritmo certo para os momentos de alegria e tensão que rolam durante os jogos, capturando a essência da capoeira, que não seria a mesma sem elas. Não por menos, o Sarau Musical da Capoeira trabalha acerca da musicalidade. Essa é a grande essência da prática. Quer saber mais sobre a importância da música na capoeira? Dê o play e fique por dentro!

A música na capoeira
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Saraus Paulistanos | 2018

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